Nós, robô
Beto Vianna
Os que nasceram ali por entre a Copa do Brasil e a
do Chile, e tiveram bem cedo o luxo da TV em casa, devem se lembrar
dos insultos do Dr. Smith ao robô da série “Perdidos
no espaço”. Cérebro-de-passarinho falante, monte
insensível de sucata, abóbora transistorizada, frankenstein
enferrujado e outras combinações ultrajantes de máquinas
e seres vivos faziam parte da extensa lista de impropérios (um
site na net conta exatas 100 pérolas smithsonianas). O personagem
boca-suja - com quem nenhum fã da série queria se identificar
- tinha endereço ideológico: ridicularizar, do lado de
cá da cortina de ferro, o temor da classe-média ao avanço
tecnológico, tão caro à guerra fria.
E quem podia culpar o consumista cidadão? Nos
anos 60 o conceito tecnologia estava mais próximo da guerra atômica
total que de comodidades já há muito incorporadas, como
a torradeira elétrica ou a própria TV. Eletrics in general,
e o general com o dedo no botão. O medo da bomba total, tal como
assumido sem pudor na série cinematográfica “Planeta
dos macacos”, de 1968. Essa série, de que sou fã
ardoroso, permite um comentário adicional sobre o efeito corrosivo
do tempo em nossa moral tecnológica: ali, Chalton Heston parecia
bem mais digno, nu sobre um cavalo e portando um rifle, do que no século
XXI de “Tiros em Columbine” (brigado por essa, Michael Moore!).
Arte e vida prosseguiram imitando-se com notável coerência.
Heston tinha andado com Luther King Jr. e pregava o desarmamento em
68, mas esse ano terminou para o ex-ativista de Hollywood. Em 2001,
ano do remake do “Planeta dos macacos” e do leitmotif de
Columbine, Heston, lobo na pele de chimpanzé, foi responsável
por introduzir uma arma de fogo na comunidade símia. Hay que
temerse ou idolatrar a máquina? N.R.A.
Um contra-ataque anti-ludista de muito melhor gosto que “Perdidos
no espaço” veio do escritor sci-fi, popularizador da ciência
e judeu-russo-americano Isaac Asimov, em uma série de obras primas
ambientadas num mesmo universo pós-histórico. A mais badalada
publicação de Asimov, “Eu robô” (qualquer
semelhança do filme homônimo com Will Smith é trágica
incidência) traz as Três Leis da Robótica: 1) um
robô não pode sacanear um humano; 2) um robô deve
acatar ordens humanas (se não houver conflito com a Lei 1); e,
3) um robô pode e deve salvar a própria pele (não
conflitando com 1 e 2). Mas, tal como os Mosqueteiros, as três-leis
contabilizavam, de fato, quatro. No fim das contas, elas dizem que um
robô deve agüentar ofensas humanas individuais oferecendo
a outra face (um approach techno-Christ) a não ser que, segundo
uma Lei Zero, os insultos prejudiquem uma entidade maior, a “humanidade”.
Se estou ficando confuso, toma lá um exemplo prático:
o Dr. Smith pode ser legalmente pulverizado pelo robô insultado
se isso significar a sobrevivência ou o bem-estar da família
Robinson. A velha primazia do direito de todos por um sobre o direito
de um por todos.
Como todos nós humanos hoje sabemos, a robótica não
resume sua vida útil no mundo da fantasia. Autômatos reais
pululam nas fábricas de automóveis e de outras irmãs-máquinas
desses operários sem-salário e sem-hora-do-lanche (deixando
os com-salário e com-hora-do-lanche, sem-emprego). Mas é
a própria idéia do robô, da vida fabricada, que
dá vida intelectual à maneira que temos escolhido para
pensar dualidades do tipo humano e não-humano, vivo e não-vivo,
indivíduo e coletividade. O século XVII foi o start-buttom
da corrida pelo autômato. Newton mecanizou o universo, Descartes
mecanizou o organismo e Hobbes mecanizou a sociedade, abrindo caminho,
nos dois séculos seguintes, para delícias como o pato
mecânico de Vaucanson e “O Turco”, o primeiro jogador-autômato
de xadrez (esse, uma bela fraude, mas quem disse que a robótica
previne a roubalheira?). A fabricação de brinquedos mecânicos
é apenas o subproduto mass-media da robótica. O x da questão
é a imitação como conhecimento, ou seja, “ciência”
tal como a conhecemos hoje. A fabricação de modelos -
na contramão do que chamamos usualmente “modelo”,
ou seja, aquilo que deve ser copiado - dá à cópia
um papel central na lendária arrogância humana: manipular
a natureza por controle-remoto, fazendo-a (ou refazendo-a) para conhecê-la.
As palavras são de Giambattista Vico: “o que é verdadeiro
e o que se faz podem ser convertidos um no outro”.
A inversão de sentido de “modelo” - da inimitável
Gisele Bündchen ao sensual modelo atômico de Rutherford -
é a razão de ser do robô e de sua quase-ciência,
a cibernética, inaugurada nos finalmentes da Segunda Grande Guerra.
Costumamos sentir que o autômato é uma reprodução,
artificial, do humano ou do organismo, mas ele é muito mais que
isso: trata-se de modelizar, isto é, explicar, como o organismo
funciona. A cibernética, um movimento intelectual que reuniu
matemáticos, antropólogos, físicos, lingüistas,
engenheiros e psicólogos nos anos 40, propunha que se modelasse
o que restava modelar, A Mente, marcando a aurora da inteligência
artificial, da vida artificial e das ciências cognitivas. A metáfora
do cérebro-computador, da mente-software e do corpo-hardware,
tão corriqueiras entre nós, nascem na esteira dos cibernéticos,
e com uma atitude entre os cientistas (majoritária, não
absoluta) de que a máquina não é representação
do organismo, mas é o organismo que funciona com “representações”
que podem ser replicadas na máquina. Pensar é a mesma
coisa que calcular sobre representações da natureza modelizadas
na mente. Vozes dissonantes, até da própria cibernética,
sempre nos alertaram, no entanto, que os organismos têm uma história
de inter-relações com o ambiente e com outros organismos
que dificilmente podem ser reduzidas a representações
internas, pré-fabricadas, desse ambiente ou desses outros organismos
(interessantes experimentos em robótica, como o robô-navegador
de Maja Mataric, aplicam o percurso comportamental histórico,
em detrimento da programação prévia, construindo
um modelo mais interessante de organismo, e, portanto, um modelo também
mais interessante de robô). Eu posso planejar ir ao cinema amanhã
(como planejei) e não ir (como não irei).
De 1945 a 1980, Asimov escreveu sua famosa trilogia que, a exemplo dos
matematicamente incorretos Mosqueteiros, é composta de uns 5
ou 6 livros, “A Fundação” (Al-Qaeda, em árabe).
Ali o cientista Hari Seldon inventa uma curiosa ciência, a “psico-história”,
que nada mais é que o sonho de muito cientista hardcore, de construir
uma ciência preditiva, formalizada, modelizada, da história,
das culturas e das sociedades humanas (não, não pense
que é a humanidade que torna a tarefa difícil: nenhum
modelo desses funcionou, ainda, com sociedades de formigas, por exemplo).
De um jeito ou de outro, Seldon e o seu legado para a posteridade dão
conta de “salvar a humanidade”, e construir a grande civilização
interplanetária chamada Fundação. Mas a ironia
final fica (é claro) para o final: o que Seldon fez, prever o
percurso das sociedades humanas, já havia sido previsto por um
robô, um robô programado para salvar a tal da humanidade,
como todo bom seguidor das Quatro Leis. A humanidade faz (modela) o
humano que faz (modela) o robô que faz (modela) a humanidade,
e assim por diante. Tudo estamos programado.
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